Museus e suas decolonialidades: uma relação amazônica museológica entre Brasil-Equador.

Andrey Manoel Leão de Leão

Esta pesquisa se fez através de duas etapas: iniciando a partir do meu projeto de pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável na Amazônia do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará-Brasil, onde busco estudar museus da região amazônica brasileira e como eles podem contribuir para uma visão sustentável local; E em um segundo momento através da viagem ao Equador, a partir do Seminário “The Amazon Basin as Connecting Borderland”da Fundação Getty, em parceria com universidades latinoamericanas. A partir dessas etapas, foi possível fazer uma comparação entre museus de dois países que compartilham a região amazônica como constituidora de seu território.

Pelo lado brasileiro, detenho-me nos museus do estado do Pará, sendo eles o Museu do Marajó, o Museu do Baixo Tocantins e o Museu-Memorial Vila da Barca. No sentido do Equador, os museus visitados foram o Museu Arqueológico e Centro Cultural de Orellana (MAACO), o Museu Pumapungo, e a Fundação Sacha Warmi – que, embora não seja uma instituição museal, assemelha-se a uma experiência museológica ao salvaguardar a cultura local através de uma comunicação para o meio social. O objetivo é demonstrar como museus amazônicos, em diferentes países, têm relações em comum e fazem seus discursos em relação a dominâncias direcionadas à região. Para isso, minha pesquisa se faz através de Análise Crítica do Discurso, que visa buscar nos discursos presenças do interdiscurso – algo já dito naquele contexto, algo que já aconteceu e que afeta o que se discute naquele local (DIJK, 2008). Por isso, busco relacionar os discursos expográficos frente à região e às dominâncias da colonialidade. Neste trabalho, então, demonstro de forma sintética os discursos produzidos nesses museus e que irá se redobrar, posteriormente, em outras publicações maiores.

ONTEM X HOJE

Para início, apresento o Museu do Marajó, localizado na cidade Cachoeira do Arari-Pará-Brasil. A instituição apresenta-se com carácter tradicional e espaço delimitado, mas que apresenta como seu principal patrimônio a ser salvaguardado, função do museu, a cultura marajoara. Desse modo, difere-se das tradicionalidades das usuais práticas desse tipo de museu, em que o foco é o objeto material. Preocupa-se em apresentar o lugar, o arquipélago marajoara, como essencial para a construção de uma percepção amazônica. Busca conectar passado e presente, demonstrando que a cultura marajoara, cuja cerâmica é exposta, ainda se mantém na atualidade através de objetos da vida atual da região.

Figura 1: Salão expositivos das cerâmicas Marajoaras no Museu do Marajó (Cachoeira do Arari-Pará-Brasil).
Fonte: https://www.oliberal.com/italia-mia/festival-italia-mia-exposicao-em-belem-tera-replicas-do-acervo-do-museu-do-marajo-1.739656

Figura 2: expografia que demonstra uma relação entre o antigo e o moderno.Fonte: https://twitter.com/pedromeletti/status/1073775231012126720

Pelo lado equatoriano, o MAACO, particularmente, apresenta em seu acervo cerâmicas de povos locais, criando assim uma narrativa sobre a diversidade dos povos da região e um conhecimento sobre sua natureza através do uso harmônico com o ambiente. As narrativas propostas dissertam acerca do impacto dos povos históricos locais na paisagem atual da região, nos conhecimentos botânicos, e nos diferentes usos das cerâmicas, etc. Logo, o discurso do museu aponta para demonstrar a diversidade e particularidades dos povos amazônicos locais através de sua coleção cerâmica.

Figura 3: Mapa que representa a diversidade de cerâmicas e grupos ao longo do rio Amazonas, MAACO (Coca, Equador).Fonte: Autor.

Figura 4: cerâmicas expostas no MAACO (Coca, Equador). Fonte: Autor.

É possível ver que a criação do discurso expográfico em ambos os museus se faz na perspetiva de criar uma relação entre o passado e o presente, e apresentar um fio de permanências entre grupos indígenas e os grupos atuais daquele território. Logo, percebo uma narrativa construída que é contra a perspectiva da modernidade que cria um ser não europeu inferior, que não tem história, que é menor e menos desenvolvido, sendo isso o que Quijano (2005) chama de colonialidade do Ser: a perspectiva da modernidade de criar uma hierarquia cultural, onde o modelo eurocêntrico é tido como superior e por isso deve ser exportado para todo o mundo.

VOZES

O segundo museu brasileiro escolhido é o Museu do Baixo Tocantins, localizado no campus da cidade de Abaetetuba da Universidade Federal do Pará. O museu foi escolhido por se constituir a partir de um ramo específico de estudos que são os museus universitários. Contudo, a sua particularidade frente a essa categoria de museu é fazer suas ações junto à comunidade externa da universidade, em vilas locais, sendo um museu universitário-comunitário. Ele se apresenta, de acordo com seu fundador como um trapiche, uma ponte que interliga dois espaços (GOMES, 2023). Analisando a instituição, é possível ver como ela não faz distinção entre os conhecimentos tradicionais e acadêmicos, nem em uma hierarquia de saber feita pela modernidade que expõe somente uma forma de perceber a realidade como conhecimento racional (LANDER, 2005). Nele, os conhecimentos tradicionais, das comunidades locais, são tão importantes quanto o que é produzido na universidade. Por isso, o museu funciona como essa ponte, que facilitar o acesso entre os dois espaços de conhecimento.

Figura 5: Local expositivo Museu do Baixo Tocantins (Abaetetuba-Pará-Brasil). Fonte: Autor

Figura 6: quadro do museu que apresenta um canto popular das vilas locais para os estudantes da universidade. Fonte: Autor.

Uma similaridade posso ver, no sentido equatoriano, no Museu Pumapungo. O museu tem em sua exposição permanente diversas salas que buscam contar a história do país, onde demarcam diversas culturas locais, suas caraterísticas e seu histórico habitacional. Há uma seção dedicada aos povos amazônicos e suas particularidades. Destaco, sobre a narrativa desse museu, a construção de um discurso colaborativo com os povos ali representados, de tom crítico e revisionista, já que muitas comunidades usam do potencial do museu para exibir narrativas contrárias àquelas preconceituosas estabelecidas, como é as tsantsas[1] do povo Shuar.

Figura 7: La Tsantsa com um texto sobre a história do artefato produzido com auxílio dos povos locais, como narrado pela mediadora no Museu Pumapungo (Cuenca, Equador). Fonte: Autor.

Intitulo este capítulo de vozes porque vejo que a assimilação narrativa entre esses dois museus se dá na criação de um discurso que aponta a necessidade de vozes locais para a desmistificação de uma hierarquia do ser, no caso, como demonstrado anteriormente, contra a colonialidade do ser. Contudo, se faz no sentido de combate a uma hierarquia epistemológica que a modernidade instaurou, onde há a noção que uma forma de construir uma percepção de mundo é melhor que outra (LANDER, 2005). No caso, os museus apresentam a necessidade dos locais e suas narrativas no combate de uma visão estereotipada, que inferioriza a região amazônica.

MUSEALIZAÇÃO EXTRA-MUROS

Por fim, apresento o Museu-Memorial da Vila da Barca localizado na comunidade periférica da Vila da Barca, bairro do Telégrafo, na cidade de Belém-Pará-Brasil, próximo à baía do Guajará. Sendo que está comunidade apresenta uma forma de morar[2] particular no meio urbano, com suas palafitas amazônicas. É um museu comunitário, da comunidade da Vila da Barca, que busca representar e resguardar um modo de vida urbana, uma forma de morar que se faz através de de um relacionamento mais próximo com o ambiente natural – no caso, com o rio, coisa que foi tida como atrasada na cidade na época da Belle Époque, já que tem raiz cultural nas comunidades indígenas locais e, por isso, sofreu com um projeto higienista histórico feito através da concepção da modernidade que impediu as classes populares de morarem no centro da cidade, impondo um modelo classicista de pequenos palácios -Palacetes- e impedindo casas com quintais, em que havia a criação criação de animais, e cortiços no centro urbano (SOARES, 2000).

Figura 8: Vista de cima da comunidade da Vila da Barca (Belém-Pará-Brasil). Fonte: https://redeglobo.globo.com/pa/tvliberal/edopara/noticia/a-diversidade-cultural-da-vila-da-barca.ghtm

Figura 8: Palafita da comunidade da Vila da Barca. Fonte: https://ponte.org/vila-da-barca-sofre-o-descaso-e-abandono-em-meio-a-pandemia-do-coronavirus/

No lado equatoriano, aponto a Fundação Sacha Warmi, que se constitui como espaço de manutenção e salvaguarda de um modo específico de produzir cerâmica, de preservação dos sentidos e conhecimentos locais que, através de visitas, proporcionam a exposição de uma cultura com relação com a natureza e seu território. Há, portanto, uma musealização da vivência local amazônica e indígena que é feita através de uma comunicação com a sociedade com a intenção de salvaguardá-la, além de dinâmicas educacionais com os moradores locais.

Figura 9: Imagem de um Banner da Fundação Sacha Warmi sobre os projetos feitos e seus objetivos. Fonte: Autor

Figura 10: Oficina de Cerâmica na Fundação Sacha Warmi. Fonte: Seminário Amazon Basin.

Noto, aqui, nestes dois espaços, uma musealização que se dá em um local externo aos muros dos espaços delimitados, dos prédios dos museus tradicionais. São espaços que buscam criar discursos através das visitações locais e do acompanhamento das ações destes espaços. Vejo nisso uma sensibilização feita através do “ser precário”, através de um processo de enlutamento. Estas categorias trago do trabalho da filósofa Judith Butler (2017), que apresenta que para ser sentido, o indivíduo deve construir mecanismos que faça com que ele seja visto como um “ser precário”, que necessita de proteção. É apontado nestes dois espaços uma ameaça externa, que busca invisibilizar os grupos locais, sejam grupos periféricos, como os da Vila da Barca, sejam os de raízes indígenas, como os da Fundação Sacha Warmi. Por isso, a musealização dos patrimônios desses grupos é exposta através de uma proposta discursiva de enlutamento, para que o visitante entenda a realidade local através da vivência. Assim, a musealização destes espaços busca ser um contra-ponto contra uma invisibilização ou violência externas contra estes grupos.

CONCLUSÃO

Embora todos os espaços que analisei tenham suas particularidades, é possível ver uma coesão entre eles dada por uma história amazônica compartilhada de subjugação pela modernidade. Ao me voltar para autores latinoamericanos, principalmente do movimento da decolonialidade (QUIJANO, 2005; LANDER, 2005; DUSSEL, 2005; MALDONADO-TORRES, 2005) é possível ver que a modernidade, feita pela colonização das américas – onde se instaura a ideia de uma diferenciação feita através da raça e de um modelo hierárquico global (QUIJANO, 2005)-, se postou na região amazônica como um apagar das vozes locais, através da subjugação e inferiorização dos povos originários, lidos como atrasados e selvagens por não terem uma epistemologia construída através de um modelo europeu, e que se mantém na atualidade através de invisibilização e perspectivas violentas.

Em vista disso, as instituições pesquisadas, como visto, agindo a partir de uma construção discursiva em uma museologia com apelo social se tornam combatentes de perspectivas externas. Por isso, os museus estudados se fazem como instrumentos decoloniais, já que a decolonialidade é pensada como um combate às lógicas dominantes mantidas desde a colonização (MALDONADO-TORRES, 2019). Logo, a instituição museal, através de seu método discursivo feito pela sensibilização, se torna uma potência para a sustentabilidade local, através da exposição de narrativas locais e uma persuasão para fins dos objetivos comunitários e contra perspectivas preconceituosas e externas.

Referências

BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Tradução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha; revisão de tradução de Marina Vargas; revisão técnica de Carla Rodrigues. 1ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, 288 p.

GOMES, Jones da Silva. Museus na amazônia tocantina… trapiches para a humanidade. In: BRITTO, Rosangela; MELO, Diogo; GOMES, Luzia; POLARO, João. In: Outras narrativas sobre museus: contribuição da Amazônia paraense para os debates sobre a nova definição de museu do Conselho Internacional de Museus (ICOM). Belém: Programa de Pós-Graduação em Artes/UFPA, p.83-94, 2023. E-book (170 p.). Disponível em: https://livroaberto.ufpa.br/jspui/handle/prefix/1229. Acesso em: 06 de Fevereiro de 2024.

LANDER, Edgardo. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales Editorial/Editor, p. 8-23, 2005.

QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino- americanas. Buenos Aires. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales Editorial/Editor, p. 107-130, 2005.

SOARES, Karol Gillet. As formas de morar na Belém da Belle-Époque (1870-1910) / Karol Gillet Soares; orientador, Geraldo Mártires Coelho. – Belém, 2000, 247p.

DIJK, Teun A Van. Discurso e Poder. São Paulo: Contexto, 2008, 281 p.


[1] Cabeça humana decepada e encolhida através de um preparo específico, que é usada com sentido ritual.

[2] a nomenclatura se faz a partir da ideia do trabalho de Soares (2000) que aponta como a economia da borracha na Amazônia provocou uma mudança nas moradias, no meio urbano e na relação da sociedade belenense com a natureza, sendo as comunidades mais tradicionais, e mais populares, expulsas do centro urbano

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