Uma Incursão na Etnohistória e na Arqueologia da Amazônia a partir da visita ao MACCO

Denise Maria Cavalcante Gomes – Museu Nacional – UFRJ

Quando o espanhol Francisco de Orellana desceu o rio Napo, no Equador, em 1541, em uma expedição em busca do lendário El Dorado e do país de la Canela, ele terminou por descobrir o grande rio Amazonas. Seu cronista, Frei Gaspar de Carvajal, descreveu a existência de dois “senhorios”, vistos como sistemas políticos regionais, com liderança de grandes chefes indígenas. O primeiro senhorio, chamado de Aparia menor, compreendia a região do baixo rio Napo, no Equador, até o Marañón no Peru. O segundo, denominado Aparia maior, estava pouco abaixo de Pebas, no Peru, até o alto rio Solimões, nas proximidades de São Paulo de Olivença, entre o rio Javari e o rio Içá, no Brasil. Em ambos os territórios, junto com diversos outros grupos indígenas, viviam os Omágua, povo de língua Tupi. Estes ocupavam povoados situados nas barrancas às margens dos rios e ilhas na região de várzea, sendo conhecidos pela prática de deformação craniana e pelo uso de vestimentas de algodão.

Cristóbal de Acuña e Maurício de Heriarte foram os cronistas da expedição portuguesa liderada por Pedro Teixeira, que saiu de Belém em 1637, em direção à Quito. Eles se referem aos Omágua como caçadores de cabeças, destacam sua organização social elaborada, bem como informam a distribuição espacial do grupo um pouco diferente do século anterior. Quase cem anos depois, os Omágua haviam se deslocado a leste, rio abaixo, ocupando desde o Alto Napo até a confluência do rio Solimões com o Jutaí, no médio Solimões. Além disso, os cronistas mencionam que os Omágua possuíam aldeias densamente povoadas, implantadas não só nas margens do rio, mas também no interior. 

Entre os anos de 1686 e 1725, o principal cronista é o padre Samuel Fritz, cartógrafo da Espanha e missionário da Companhia de Jesus, designado para a catequese indígena de uma ampla região, entre o rio Napo e o rio Japurá. Fritz documentou a ocupação de vinte duas ilhas e áreas de várzea pelos Omágua, onde estes cultivavam suas plantações no alto Solimões. Seus relatos refletem os esforços de missionarização, com referências à desarticulação das antigas aldeias indígenas dos Omágua e outras etnias, bem como a prática dos descimentos que reunia diferentes etnias em uma mesma missão.

Pesquisas arqueológicas foram realizadas pelo casal de arqueólogos norte-americanos Betty Meggers e Clifford Evans durante os anos 1950, destinadas a testar a hipótese de origem andina da fase Marajoara (500-1300 d.C.), sugerindo uma dispersão da tradição polícroma que teria se dado à jusante do rio Amazonas. Suas investigações nos rios Napo, Aguarico e Tiputini estabeleceram a fase Napo (1168-1480 d.C.), a partir da caracterização de uma cerâmica também vinculada à tradição polícroma da Amazônia. Essa ocupação foi correlacionada por eles aos Omágua. As vasilhas cerâmicas destinadas a servir e outras ao armazenamento de bebidas fermentadas, eram utilizadas em rituais e outras para enterramentos secundários eram cobertas por complexos motivos compostos grafismos, alguns com elementos abstratos organizados em padrões multidimensionais e outros de caráter labiríntico, por vezes combinados com figurações estilizadas de serpentes. As urnas funerárias antropomorfas, exibindo de modo naturalista homens sentados, à guisa de xamãs, constituem um dos destaques deste conjunto cerâmico.

Figura 1 – Fachada do MACCO – Museu Arqueológico Centro Cultural Orellana, Coca, Equador. Foto: Denise Maria Cavalcante Gomes

O MACCO, localizado na cidade de Coca, às margens do rio Napo, na Amazônia Equatoriana, reúne a maior coleção de cerâmica Napo existente. Desta fazem parte artefatos escavados por Meggers e Evans, bem como peças provenientes de doações. Sua exposição convida o visitante a uma imersão na história indígena da Amazônia, conectando esta região do Equador a toda extensão do rio Solimões até o Baixo Amazonas, na fronteira do estado do Amazonas, no Brasil.

Basta olhar para o acervo do MACCO, para perceber que vasilhas Napo, abertas com flange mesial e decoração plástica acanalada, consistem em artefatos que tiveram uma distribuição geográfica ampla na calha do rio Amazonas e principais afluentes, até o baixo Amazonas, com sua ocorrência nos sítios da fase Guarita e complexos semelhantes. A decoração plástica e pintada com os grafismos com motivos labirínticos e terminações de serpentes também estão presentes na fase Guarita e ocasionalmente figuram, modificadas, em outras fases regionais.

Formas típicas idênticas às da fase Napo foram registradas por meio de escavações sistemáticas, realizadas no Alto Solimões, próximas à região da tríplice fronteira (Brasil-Peru-Colômbia). Os grafismos Napo surgem em urnas funerárias pintadas, não figurativas, da tradição local. Mas ali não se encontram urnas funerárias antropomorfas, modeladas, em forma de homens sentados.

No MACCO as urnas funerárias Napo apresentam uma grande variabilidade formal, algumas possuem a forma humana estilizada, outras bastante naturalista. Além da postura sentada, as figuras masculinas portam adornos e pinturas faciais, seguram instrumentos musicais e apresentam gestos corporais.  Mas é a figuração humana de um xamã, um especialista religioso que se transforma em jaguar, a partir da sugestão da face bipartida e do surgimento de patas cobertas por pintas indicativas da pelagem do animal, um dos artefatos que mais chama a atenção dos visitantes.  

Figura 2 – Urna Funerária antropomorfa figurando um xamã em transformação. Foto: Denise Maria Cavalcante Gomes

Tendo em vista as datações existentes de C14, é possível apontar que as datas mais antigas para a tradição polícroma da Amazônia estão em sítios da fase Guarita (cerca de 800 d.C) e em sítios correlatos, na Amazônia Ocidental e não no Equador, sendo a fase Napo (1168-1480 d.C.) mais tardia. Contudo, as influências culturais e conceitos cosmológicos expressos nas decorações cerâmicas da tradição polícroma da Amazônia possuem ampla dispersão geográfica e parecem ter sido compartilhadas por grupos indígenas contemporâneos, que habitaram a calha do Amazonas e afluentes durante o período pré-colonial. 

Quanto aos relatos dos cronistas dos séculos XVI e XVII, que se referem aos dois “senhorios”, é possível postular a importância política de chefias regionais Omágua, tanto no Equador quanto no Brasil, convivendo com várias outras etnias. No que tange à cerâmica, a visita ao MACCO aponta para uma espécie de “língua franca” da tradição polícroma da Amazônia, que ao mesmo tempo em que partilhou elementos comuns, desenvolveu formas locais. A cerâmica da fase Napo parece ter sido o correlato de uma sociedade regional, possivelmente hierárquica e com grande expressão do xamanismo como instituição. É o que os artefatos arqueológicos deixam entrever.

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